Dia Nacional da Visibilidade Trans e políticas de sobrevivência e educação na UFSC
Dia 29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans! A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) celebra a vida das pessoas trans, convida toda a comunidade a refletir sobre a violência histórica que tem impedido a cidadania e a vida das pessoas trans e a se implicar com práticas antidiscriminatórias contínuas na Universidade.
Essa data decorreu de um ato realizado no dia 29 de janeiro de 2004 no Congresso Nacional por transexuais e travestis, quando foi lançada a campanha “Travesti e respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida”! E desde então, a data foi reconhecida como “Dia Nacional da Visibilidade Trans”.
A política de visibilização é fundamental frente a invisibilização sistemática das pessoas trans, que é efeito do não reconhecimento dessas vidas como vidas a serem vividas. Nesse sentido, esta política se põe a dar visibilidade, a intervir no modo como essas pessoas são reconhecidas na sociedade e se põe a colaborar para a efetivação de condições dignas para essas vidas, pois não basta reconhecer a existência, mas produzir condições de vida para as pessoas trans.
E a UFSC, como instituição comprometida com a sociedade e com a formação de sujeitos vislumbrando a emancipação humana, o que requer uma educação para a multiplicidade, tem expresso na sua política a defesa irrestrita dos direitos humanos. O que estabelece a promoção da erradicação de atos discriminatórios e enfrentamento de todas as formas de desigualdade social. Desde 2016, existe na UFSC o trabalho da Coordenadoria de Diversidade Sexual e Enfrentamento da Violência de Gênero (CDGEN) que, atualmente, faz parte da Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (PROAFE). Essa instância da Universidade tem atuado com implementação de políticas, coordenação de programas, projetos e atividades, e promoção de campanhas para o enfrentamento da LGBTQIA+fobia e violência contra a mulher.
Gabriela da Silva – mulher trans, estudante pesquisadora de doutorado da UFSC, trabalhou durante 30 anos como professora na Rede Estadual de Educação de Santa Catarina – tem uma relação profunda e histórica com a UFSC, que se deu muito antes de sua entrada no doutorado, por meio de participações em rodas de conversas e seminários do Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividade, além de pesquisas e documentários. A estudante relata: “falar sobre minha experiência vivida, tornou-se algo extremamente empoderador para minha existência, foram momentos de ensino-aprendizagem que me fortaleciam em acreditar que tinha capacidade de ser mais para mim. Os desafios são cotidianos que precisam ser pensados para que possamos sobreviver num universo que não foi construído para nós”. E ressalta: “ há barreiras que precisam ser transpostas para que nossos saberes sejam referendados dentro dos conhecimentos produzidos na universidade”.
Em relação à sua permanência na Universidade, Gabriela enfatiza a importância da presença e acolhimento de Maria Zanela que lhe apresentou a Universidade e uma rede de amigues. Destaca que o marco para a sua vida na Universidade foi a sua participação na idealização do NeTrans (Núcleo de Estudos e Pesquisas de Travestilidades, Transgeneridades e Transexualidades da UFSC), o primeiro grupo de pesquisa do Brasil criado por estudantes trans. “Acredito que o núcleo possibilitou que outras pessoas se sentissem acolhidas, sendo uma referência na construção de políticas dentro do contexto universitário e que outras pessoas trans se sentiram encorajadas a lutar por seus direitos”
Gabriela destaca: “Não podemos sair da universidade sem perspectiva de transformação de nossa própria realidade que é de sobrevivência. Precisamos travestilizar a universidade para que outras pessoas trans acreditem que podem haver mudança através da escolarização”.
A política de sobrevivência trans ainda precisa ser um imperativo em uma realidade marcada pelo preconceito e violência contra essas vidas. Conforme o Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA, 2022), no ano de 2021 aconteceram pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 (cento e trinta e cinco) travestis e mulheres transexuais, e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. A pesquisa notifica que a média dos anos considerados nesta pesquisa (2008 a 2021) foi de 123,8 assassinatos/ano. Ressalta que apenas no ano de 2021 foram encontrados 140 casos.
Em relação à escolarização da população trans, estima-se que cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental, estes são dados do Projeto Além do Arco-íris/Afro Reggae. Um quadro que decorre da exclusão sistemática desde o núcleo familiar até as outras instâncias sociais, o que leva à desumanização, precarização da formação e a dificuldades na inserção no trabalho formal, mantendo a população trans em um ciclo de exclusão e violência.
Por meio do movimento dos estudantes trans da UFSC, com o apoio dos trabalhos iniciados anteriormente pela Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidade (SAAD), da PROAFE e da PRAE (Pró-Reitoria de Permanência e Assuntos Estudantis), no dia 15 de dezembro de 2022 foi realizado um encontro para a construção de uma minuta para a política de acesso e permanência qualificada para estudantes trans na UFSC. E no dia 23 de janeiro de 2023 foi deliberado o processo e este seguiu para a tramitação nas demais instâncias da Universidade . A previsão é que até o final de abril deste ano esta política seja apreciada pelo Conselho Universitário. Consideramos essa política como uma conquista histórica nas Universidades brasileiras, como uma forma de efetivar a garantia de uma educação pública para todas (todos/todes) como prevê a Constituição Federal Brasileira e as Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, sobretudo para a população trans que tem sido desprovida dos direitos de cidadania. Esse movimento para a regulação desta política testemunha o lema: “Nada sobre nós, sem nós”.
Gabriela ressalta que esta conquista inicial se materializou com a “transgressão de resistir a uma universidade cisheteronormativa branca”
As políticas de genero na UFSC não são novidade, por exemplo, desde 2015, por meio da Portaria 59/CUn/2015, é assegurado a possibilidade do uso do nome social para pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros – binárias ou não) em registros, documentos e atos da vida acadêmica, em todos os níveis de ensino e atividade acadêmica. O nome social refere-se à designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. Dados de outubro de 2022 mapeiam 108 estudantes com nome social, em 46 cursos.
Como a inclusão de nome social pode ser solicitada? Pode ocorrer a qualquer momento do ano letivo, e pode ser realizada até na inscrição para o Vestibular. O uso do nome social requerido constará em todos os registros, sistemas acadêmicos e documentos internos gerados pela Universidade, sem menção ao nome civil.
A UFSC, por meio da CDGEN, tem atuado no enfrentamento da LGBTQIA+fobia e violência contra a mulher. E algumas das intervenções desse trabalho são: a) grupo trans(ita): projeto de extensão de acolhimento voltado às pessoas trans vinculadas a UFSC; b) Entre-laços: roda de compartilhamento entre mulheres; c) Refletindo masculinidades; e d) Acompanhamento de estudantes.
E em breve, a UFSC contará com o Serviço Especializado de Atendimento às Vítimas de Violências (SEAVIs), de modo a oferecer uma escuta e um trabalho qualificado aos sujeitos que têm seus corpos marcados pela injúria e violência, como a violência LGBTQIA+ fóbica.
Com a sua trajetória e finalização do seu doutorado na UFSC, Gabriela relata que para além da obtenção do diploma, que é atravessado pelas políticas de acesso e permanência, há a “sobrevivência” dos sujeitos trans. E faz algumas propostas à UFSC: a) que a UFSC junto à PROAFE construa uma política de empregabilidade com empresas para que as pessoas trans tenham a possibilidade de ingressar em um trabalho formal; b) que se crie cotas para pessoas trans nos editais de concurso público na UFSC, como uma forma de “romper com os estigmas que nos cercam em relação na nossa corporalidade e identidade, as quais influem na não contratação de nosso trabalho mesmo com formação acadêmica”; c) que a política de acesso e permanência de pessoas trans na Universidade seja aprovada, para que “outros sonhos, desejos e utopias possam ser construídas nesse espaço que ainda é muito segregacionista enquanto produção de conhecimento”
A UFSC, opondo-se a uma educação reprodutora de conservadorismos e violências, além de incluir as pessoas trans na sua dinâmica, política institucional e educação, acolhe a diferença como uma forma de manter a Universidade colorida, múltipla e em contínuo movimento rumo à emancipação humana.
“Quero dizer o quanto me sinto orgulhosa de fazer parte desse trânsito construído por nossas corporalidades e identidades. Claro que há muito ainda o que lutar para que tanto do ponto de vista epistemológico como político haja de fato uma transformação social na universidade. Mas tenho convicção de que muito já foi feito e mas será feito. Mas do que nunca é necessário construir alianças, sensibilizar a instituição e empoderar as pessoas trans para que nossa demanda seja de fato e de direito garantida”.
Por: Lucas Emmanoel/equipe da CDGEN e revisado/apoio: karolaine heckler